terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

CONTRA A CULTURA DO CANCELAMENTO

O que uma atriz, uma escritora, um cantor, um padre, um ex-juiz contemporâneos e até, inclusive, uma princesa pode ter de algo em comum num determinado fenômeno social? A atriz Alessandra Negrini se fantasiou no bloco de carnaval de índia, para algumas pessoas uma não-índia não pode se fantasiar de índia, sendo assim a opção pela escolha da fantasia foi erradíssima, está cancelada. Acusada de apropriação cultural.

A escritora J.K Rowling autora do livro Harry Potter tuitou um certo artigo na internet que dava a entender que o termo mulher só pode ser apropriadamente aplicado ao gênero biológico, como se hoje em dia não fosse mais normal e nem pudesse mais ter uma opinião e posicionamento diferente baseado na ciência. Está cancelada. Acusada de “transfóbica”.

O cantor sertanejo Eduardo Costa no seu relacionamento, em 2018, referiu-se num comentário, o próprio em tom de brincadeira por já ter intimidade, sobre o uso de uma roupa da sua mulher, está cancelado. Acusado de machismo.

O padre Fábio de Melo fez um procedimento estético de harmonização facial que não só desagradou a muitos de seus seguidores e fãs que, de uma ora para outra, ainda alguns chegaram ao ponto de acharem que o Fabio de Melo se preocupa, a grosso modo, mais com sua aparência do que com a sua essência. Está cancelado. Acusado de vaidoso.

O ex-juiz Sérgio Moro que já era odiado, de um lado, pelos petistas pelo combate à corrupção, passou a ser, de outro lado, odiado por bolsonaristas após proceder ao se afastar e denunciar o presidente Bolsonaro do possível interesse de querer intervir na própria Policia Federal com determinados fins exclusivamente pessoas. Está cancelado.

Nem os mortos escapam. A princesa Isabel assinou a Lei Áurea, em 1888, que foi a lei na qual extinguiu a escravidão no Brasil. Em relação a esse acontecimento como bem disse o historiador Paulo Rezzutti: “é óbvio que houve atuação dos próprios negros por sua libertação, mas daí tirar os méritos da princesa só porque era branca é estupidez”. Está cancelada. Foi acusada de roubar o protagonismo da abolição.

A cultura do cancelamento é adotado nas redes sociais por todo espectro político. Atacando não só pessoas famosas, mas também anônimas. Deve haver clareza de que seu método de demolições de reputações, na maioria das vezes, acontecendo em ritmo frenético, sem permitir o direito a defesa, merece repúdio.  

O perigo existente na histeria e ódio geral promovido pela ignorância da cultura do cancelamento lembra até, inclusive, de um episódio histórico ocorrido, entre 1962 e1963, na cidade de Salem, colônia americana de Massachusetts, conhecido como “caça às bruxas”.

Outro fenômeno social através do qual também foi baseado em suspeitas, mentiras e fofocas, dezenove pessoas (19), em sua maioria mulheres, foram mortas enforcadas acusadas de cometer bruxaria. Coisa que vamos supor que mesmo se tivesse, de fato, acontecido a bruxaria. Não colocando em risco e nem tão pouco cometendo enorme mal a vida de outras pessoas, levando em consideração a lei ou mesmo o bom senso jamais se justificaria como contraponto tamanha crueldade e injustiça do ocorrido no “caça às bruxas”.

Por isso, é importante destacarmos dois elementos que são fundamentais da democracia: a liberdade de crítica e de pensamento. No entanto, há necessidade de haver o mínimo de ética e bom senso para não transformarmos, por exemplo, a extremidade de ocorrência de ataques de ideias em ataques de pessoas. Pois, assim corremos o risco até mesmo de transformar a defesa da democracia em demagogia, ou seja, na teoria estamos supostamente defendendo ideias. Enquanto, ao mesmo tempo, na pratica, estamos, de fato, promovendo ataques pessoais. Abusando desnecessariamente da “liberdade de crítica” e de “pensamento”.

Quando algo tão natural e comum como a existência de diferença de pensamentos e posicionamentos se torna em algo anormal e fora do comum, ao ponto de não aceitar a manifestação de contrariedades na democracia, isto é, a existência de opiniões diferentes, ideias divergentes. Já que democracia não é equivalente a ditadura do consenso, equivocado entendimento que pressupõe, na verdade, a imposição da vontade da maioria negando essenciais direitos básicos e inalienáveis de uma pessoa.

Esquecendo que a liberdade de pensamento também garante outros dispositivos da legislação brasileira no próprio artigo 5º da Constituição, de 1988, por exemplo, em dois incisos: “Inciso V: impõe limites à liberdade de pensamento ao garantir o direito de resposta para aqueles que forem ofendidos; Inciso IX: garante a liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, livre de censura ou licença;”. 

Logo, a liberdade não pode ser ignorantemente utilizada como justificativa para desrespeitar, violando leis ou desprezando o bom senso e, nem tão pouco, a própria liberdade de quem estiver sendo vítima de cancelamento não pode jamais ser desrespeitada e violada sob o pretexto de determinados argumentos propagados no intuito de cancelarem que, na verdade, disfarçam serem inspirados,  muitas das vezes, em sentimentos negativos,  dentre outros, de maledicência, ódio, inveja, falsidade que instigam ataques pessoais a reputação  de pessoas que simplesmente não se têm afinidades. Por essas e outras razões, pode-se dizer que, de fato, algo não anda certo com o fenômeno da cultura do cancelamento. Portanto, o melhor mesmo a se fazer é: cancelar a cultura do cancelamento.

TEXTO: ANTONIO GUSTAVO

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EXISTÊNCIA

A existência é o que basicamente acontece no espaço do tempo e no tempo do espaço de duração de uma vida.  (Antonio Gustavo)