O que
uma atriz, uma escritora, um cantor, um padre, um ex-juiz contemporâneos e até,
inclusive, uma princesa pode ter de algo em comum num determinado fenômeno
social? A atriz Alessandra Negrini se fantasiou no bloco de carnaval de índia,
para algumas pessoas uma não-índia não pode se fantasiar de índia, sendo assim a
opção pela escolha da fantasia foi erradíssima, está cancelada. Acusada de
apropriação cultural.
A escritora J.K Rowling autora do livro Harry
Potter tuitou um certo artigo na internet que dava a entender que o termo mulher só pode ser apropriadamente aplicado ao gênero biológico, como se hoje em
dia não fosse mais normal e nem pudesse mais ter uma opinião e posicionamento
diferente baseado na ciência. Está cancelada. Acusada de “transfóbica”.
O
cantor sertanejo Eduardo Costa no seu relacionamento, em 2018, referiu-se num
comentário, o próprio em tom de brincadeira por já ter intimidade, sobre o uso
de uma roupa da sua mulher, está cancelado. Acusado de machismo.
O
padre Fábio de Melo fez um procedimento estético de harmonização facial que não
só desagradou a muitos de seus seguidores e fãs que, de uma ora para outra, ainda
alguns chegaram ao ponto de acharem que o Fabio de Melo se preocupa, a grosso
modo, mais com sua aparência do que com a sua essência. Está cancelado. Acusado
de vaidoso.
O
ex-juiz Sérgio Moro que já era odiado, de um lado, pelos petistas pelo combate à corrupção, passou a ser,
de outro lado, odiado por bolsonaristas após proceder ao se afastar e denunciar
o presidente Bolsonaro do possível interesse de querer intervir na própria Policia
Federal com determinados fins exclusivamente pessoas. Está cancelado.
Nem
os mortos escapam. A princesa Isabel
assinou a Lei Áurea, em 1888, que foi a lei na
qual extinguiu a escravidão no Brasil. Em relação a esse acontecimento
como bem disse o historiador Paulo Rezzutti: “é óbvio que houve atuação dos
próprios negros por sua libertação, mas daí tirar os méritos da princesa só
porque era branca é estupidez”. Está cancelada. Foi acusada de roubar o
protagonismo da abolição.
A cultura do cancelamento é adotado
nas redes sociais por todo espectro político. Atacando não só pessoas famosas,
mas também anônimas. Deve haver clareza de que seu método de demolições de
reputações, na maioria das vezes, acontecendo em ritmo frenético, sem permitir
o direito a defesa, merece repúdio.
O perigo existente na
histeria e ódio geral promovido pela ignorância da cultura do cancelamento lembra
até, inclusive, de um episódio histórico ocorrido, entre 1962 e1963, na cidade
de Salem, colônia americana de Massachusetts, conhecido como “caça às bruxas”.
Outro fenômeno social
através do qual também foi baseado em suspeitas, mentiras e fofocas, dezenove
pessoas (19), em sua maioria mulheres, foram mortas enforcadas acusadas de
cometer bruxaria. Coisa que vamos supor que mesmo se tivesse, de fato,
acontecido a bruxaria. Não colocando em risco e nem tão pouco cometendo enorme mal
a vida de outras pessoas, levando em consideração a lei ou mesmo o bom senso
jamais se justificaria como contraponto tamanha crueldade e injustiça do
ocorrido no “caça às bruxas”.
Por isso, é importante
destacarmos dois elementos que são fundamentais da democracia: a liberdade de crítica
e de pensamento. No entanto, há necessidade de haver o mínimo de ética e bom
senso para não transformarmos, por exemplo, a extremidade de ocorrência de
ataques de ideias em ataques de pessoas. Pois, assim corremos o risco até mesmo
de transformar a defesa da democracia em demagogia, ou seja, na teoria estamos
supostamente defendendo ideias. Enquanto, ao mesmo tempo, na pratica, estamos,
de fato, promovendo ataques pessoais. Abusando desnecessariamente da “liberdade
de crítica” e de “pensamento”.
Quando algo
tão natural e comum como a existência de diferença de pensamentos e
posicionamentos se torna em algo anormal e fora do comum, ao ponto de
não aceitar a manifestação de contrariedades na democracia, isto é, a
existência de opiniões diferentes, ideias divergentes. Já que democracia não é
equivalente a ditadura do consenso, equivocado entendimento que pressupõe, na verdade,
a imposição da vontade da maioria negando essenciais direitos básicos e
inalienáveis de uma pessoa.
Esquecendo que a liberdade
de pensamento também garante outros dispositivos da legislação brasileira no
próprio artigo 5º da Constituição, de 1988, por exemplo, em dois incisos: “Inciso V: impõe limites à liberdade de
pensamento ao garantir o direito de resposta para aqueles que forem ofendidos; Inciso IX: garante a liberdade de expressão
intelectual, artística, científica e de comunicação, livre de censura
ou licença;”.
Logo, a liberdade não pode ser ignorantemente utilizada como
justificativa para desrespeitar, violando leis ou desprezando o bom senso e, nem tão pouco, a própria liberdade de quem estiver sendo vítima de cancelamento não pode jamais ser desrespeitada e violada sob o pretexto de determinados argumentos propagados no intuito de cancelarem que, na verdade, disfarçam serem inspirados, muitas das vezes, em sentimentos negativos, dentre outros, de maledicência, ódio, inveja, falsidade que instigam ataques pessoais a reputação de pessoas que simplesmente não se têm afinidades.
Por essas e outras razões, pode-se dizer que, de fato, algo
não anda certo com o fenômeno da cultura do cancelamento. Portanto, o melhor
mesmo a se fazer é: cancelar a cultura do cancelamento.
TEXTO:
ANTONIO GUSTAVO